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Cortella, a ética e muitas verdades


Escreve Cortella que há uma fratura ética no nosso cotidiano que é a acomodação. Isto é, a percepção de que as coisas são como são. Não por serem do melhor modo, mas porque do modo como são não demandam esforço. A postura do “não mexa, é melhor assim” é muito marcante. O que justifica essa condição acomodada? O hábito. E o que é o hábito? É aquilo que, feito de maneira repetitiva, ganha função de norma. Em vez de ser uma possibilidade, se torna um imperativo. O escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910) dizia que “hábitos não são coisas que se jogam pela janela, você tem de pegar e empurrar pela escada degrau por degrau”. Para se desvencilhar de um mau hábito ou para adquirir bons hábitos, é preciso um esforço intenso já que a passividade e o repouso que ele oferece contribuem para o automatismo. Fazer do mesmo modo, acreditando que aquele é o único modo de ser feito, me oferece tranquilidade para continuar fazendo do mesmo jeito. Esse nível de repetitividade acalma, mas pode gerar passividade e, portanto, ausência de vitalidade. O teólogo Erasmo de Roterdã (1466-1536), em sua obra Colóquios, escreveu: “Não há nada de tão absurdo que o hábito não torne aceitável”. Ele chama atenção para o poder do hábito de configurar uma regra. Quando o hábito vira regra, ele perde a natureza de ser um dos modos de fazer para ser uma conduta contínua. A frase “com o tempo você se acostuma” expressa um modo de fazer que se instalou e se tornou regra. Isso está presente no nosso dia a dia. Paga-se IPVA e paga-se pedágio. Pagam-se o INSS e o seguro de saúde privado. Toma-se algo como normal. Não se deve tomar aquilo que é comum como normal. Isso é comum, não é normal. Normal é estar na norma, e normal seria o contrário. Pela norma, eu não poderia ser bitributado. Ter dois pagamentos para a mesma atividade configura desperdício. Isso seria a norma. Mas nós entendemos que aquilo que seria comum seja entendido como normal. É normal colar, é normal professor desconsiderar um risco de perturbação do ambiente, é normal a família não participar das reuniões, é normal haver gozação em sala de aula. Isso é comum, não é normal. Ao se tornar um hábito, ele precisa ser impedido; é preciso recusá-lo. Comum também é nos ambientes corporativos a competição desmedida, o estresse, a multifuncionalidade exigida e pouco reconhecida..., mas não é normal. E como fica o sistema? Com normas de conduta, regras de procedimento, falas éticas e pouca prática que implique mudanças. Enquanto isso pessoas adoecem e programas de qualidade de vida são criados, muitas vezes, para mitigar os danos deste cenário. É preciso parar este sistema antes que ele desumanize o homem. Há vários exemplos positivos? Sim, mas estes precisam deixar de ser pontuais para serem coletivizados.

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